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Evolução do pensamento logístico da MB

PARTE IV -- SOBRE A EDUCAÇÃO E O ENSINO

Artigo 32_1                                                                       ano 2009   jul/ago/set                                       autor:VAlte (Ref) Ruy Capetti

       UM PARTICULAR ASPECTO NA EVOLUÇÃO DA LOGÍSTICA QUE MERECE ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DIFERENCIADAS É O ENSINO NA MB.

   A porta de entrada natural de novos conhecimentos no ambiente naval é o ensino, considerando que deva existir um Sistema de Ensino (doravante assim referido) composto do Sistema de Ensino Naval (SEN) e das Escolas de Altos Estudos, composto tanto os cursos do  Sistema de Ensino Naval, como aqueles ministrados, no mínimo, pela Escola de Guerra Naval, (levando em conta que há,também, outras mecanismos que contribuem para os Altos Estudos, como  universidades, cursos no exterior etc).  

    Contudo, em qualquer desses componentes não se observa a existência de cursos voltados para o preparo de oficiais que lhes proporcione capacitação de "logístico" (além de suas habilitações atuais), de modo a poderem contribuir, mais intensamente, para as decisões relativas ao preparo do Poder Naval. 

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Esses aspectos, que já foram mencionados no número anterior sobre a Evolução do Pensamento Logístico na MB, sugerem uma razão, talvez a principal, para a indiferença que se observa na compreensão naval de que a Logística tem que sofrer transformações, a fim de atender a Estratégia Nacional de Defesa, em última instância.

SEM ADEQUADA ESTRUTURA DE ORGANIZAÇÃO, SEM DOUTRINA E SEM CAPACITAÇÃO ...

Se em ocasiões anteriores mencionamos descompassos conceituais na doutrina logística, acrescentamos agora alguns comentários referentes à própria organização naval e ao preparo do pessoal para o exercício da Logística, neste último caso enfatizando aspectos da carreira que contribuem para deteriorar a capacidade de compreensão conceitual da Logística. Enumeramos os  seguintes (sem serem exaustivos): 

1. A Logística é relegada a um plano secundário na própria estrutura organizacional da Marinha do Brasil, principalmente no que diz respeito ao preparo do Poder Naval, pois não existe nenhuma sub-divisão (exemplo, uma Secretaria ou um Departamento de Logística) da estrutura para coordenar o trato de atividades principais dos diversos sub-sistemas logísticos, entre os quais se encontra o Sistema de Apoio Logístico.

2. O Sistema de Apoio, como definido pela própria Marinha (como  conjunto de organizações e meios de apoio logístico que, funcionando desde o tempo de paz, deverá estar em condições de atender as necessidades da MB em caso de guerra ou situação de emergência), carece de gestão física. O EMA se diz seu órgão de direção geral, aliás como de tudo o mais na Marinha (Nota 1), mas não tem atuação gerencial, exercendo, isto sim, uma discutível supervisão geral.

3. No patamar dos mais elevados postos da carreira, até Capitão-de-Mar-e-Guerra (CMG), a preferência dos cursos na atualidade, de altos estudos em sua maioria, põe mais ênfase nos aspectos da Política e da Estratégia navais, sendo praticamente abandonados os aspectos técnicos, principalmente os que dizem respeito à Logística. 

Até que ponto esses comentários tem a ver com o ensino? O item 3 é auto-explicativo. Quanto aos item 2, uma das consequências na organização atual, do EMA não gerenciar o Sistema de Apoio logístico (logo, ninguém gerencia), é a dificuldade, senão impossibilidade, da  coordenação dos esforços de preparação do pessoal entre o SEN e  os Altos Estudos militares.

Por seu turno, nem mesmo a organização militar mais ligada às atividades logísticas (pelo menos algumas dessas atividades), que é a Secretaria Geral de Marinha, exerce qualquer supervisão sobre o SEN. E não temos a menor dúvida de que o ensino é uma atividade logística.

Partindo do princípio que o controle da logística deve ser centralizado (enquanto que sua  execução deve ser descentralizada), a falta na organização naval de uma entidade que exerça esse papel de centralização inibe a formação de uma  doutrina logística, a qual depende da capacitação do pessoal, como veremos logo adiante.

As consequências da falta de capacitação em Logística são, pois,  inevitáveis - além de falhas na estruturação da força (o item 1 acima), esta ressente-se da falta de doutrina logística nas "áreas"(que deveriam ser sistemas) de pessoal e material. Quanto a esta última, por exemplo, sentimos a necessidade de existir um nível de ensino universitário no âmbito dos Altos Estudos militares para tratar de aspectos técnicos na obtenção do material etc.

OPORTUNIDADE E DIFICULDADES PARA APRIMORAMENTO DO QUADRO VIGENTE:

Voltando aos aspectos da formação de pessoal, pode-se inferir que há campo para aperfeiçoamentos no ensino da Logística na MB, desde que a cultura assim o permita. Porém, há indícios de entraves à evolução cultural, pelo menos na área de abordagem desse texto.

Para eliminar tais entraves é preciso que seja identificado o papel que deve caber ao Sistema de Ensino (o que não é feito aqui), abrangendo o SEN  e o ensino de Altos Estudos, pois é grande a possibilidade de que a principal falha na compreensão e aplicação da Logística seja decorrente da inexistência desse sistema.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O SISTEMA EDUCACIONAL SER O PORTÃO DE ENTRADA DE NOVAS IDÉIAS, OU ATUALIZAÇÕES, NA MB:

Embora muitos conhecimentos já sejam disseminados no âmbito educacional da MB, há outros,  mais atuais,  decorrentes de novos conceitos ou inovações tecnológicas (e às vezes não tão novos assim) que, advindos do meio exterior, devem chegar ao ambiente naval e serem disseminados por um adequado processo.

Igualmente que o material, cujo portão de entrada são as Diretorias Técnicas, também os novos conhecimentos devem ser regidos pelo mesmo princípio. Esta é uma das razões porque foram criadas na MB, as Organizações Militares de Orientação Técnica (OMOT), associadas às Diretorias Técnicas e outras organizações, que orientam a introdução de  conhecimentos no SEN (mas não no Sistema de Ensino linhas acima definido).

Evidenciam-se, então, duas falhas: a primeira pela própria limitação de cada OMOT segundo a sua própria área de atuação; a segunda, por isto servir, apenas, ao SEN.

É fato que mesmo sem existir o tal Sistema de Ensino, é no SEN, principalmente, se não exclusivamente, que é disseminada a maioria dos  aspectos técnicos, por meio de diferentes cursos. Porém, de uma maneira geral, isto acontece somente para os mais baixos postos da carreira, e quase sempre com vistas à operação dos meios navais. Tais cursos profissionalizantes têm a natureza de especializações e aperfeiçoamentos.

A Logística, nesses cursos, tem abordagem de consumo, e diz respeito inteiramente aos aspectos operacionais.

Recordando o item 3 do primeiro parágrafo, no nível dos mais elevados postos da carreira, até Capitão-de-Mar-e-Guerra (CMG), a preferência dos cursos converge mais para aspectos da Política e Estratégia navais, sendo praticamente abandonados os aspectos técnicos e, consequentemente, afastando a cultura dos oficiais, da Logística.

Semelhante ao que ocorre no SEN, a Logística nos cursos de Altos Estudos repete a abordagem segundo o planejamento operacional, em face do teatro de operações.

MAIS CONSIDERAÇÕES QUE PODEM, AINDA, SER ACRESCENTADAS AO QUADRO, SE LEVARMOS EM CONTA:

(a) a falta de um mecanismo de disseminação  de conhecimentos segundo uma metodologia científica, que considere os aspectos técnicos que envolvem a obtenção dos sistemas e equipamentos, principalmente na educação dos escolhidos para os mais altos escalões de mando (particularmente do Corpo da Armada); e

(b) que no almirantado não existem veículos de propagação de conhecimentos ou atualizações de natureza técnica, e nesses últimos postos não se identifica a participação de altas patentes em quaisquer cursos de atualização. (Nota 2)

A VISÃO LIMITADA ...

Desse modo, no nível do almirantado a visão dos aspectos técnicos que predomina, na análise dos mais diversos problemas navais, é uma visão administrativa absorvida pelos oficiais até o posto de Capitão-de-Mar-e-Guerra, praticamente fruto somente da operação de equipamentos e sistemas de defesa. Em essência, sem ter sido desenvolvida aptidão de gerenciar a tecnologia eficazmente.

Houve um Ministro que, em determinado período (Nota 3), buscou alterar esse quadro, proporcionando conhecimentos  por meios de cursos que iriam evitar a falta de aptidão para gerenciar a tecnologia eficazmente,  principalmente para os oficiais do Corpo da Armada, dos quais muitos chegariam aos altos postos que decidem o futuro da Marinha. Mas, tão logo substituído na gestão da pasta, rapidamente a situação reverteu para o quadro anterior, e continuou-se a ter administradores dos destinos da Marinha sem cultura técnica e, portanto, sem base para agregar sensibilidade técnica face à inovação tecnológica.

RAZÕES  DAS DIFICULDADES PARA A ENTRADA DE NOVOS CONHECIMENTOS NA MARINHA

Observa-se, no inventário intelectual da Marinha Brasileira, principalmente nos mais altos postos do Corpo da Armada, uma espécie de “desconexão” (Nota 4), que desalinha os objetivos do administrativo e do técnico.

 

   Um observador externo poderia vincular esse fato a uma certa resistência interna na MB em absorver conhecimentos advindos do meio ambiente.    

   Procuramos buscar interpretação  que ratifique a observação de que há dificuldade do ambiente naval (principalmente nos altos postos) de absorver colaborações visando a melhoria contínua dos processos nele praticados.

Em primeiro lugar, é cabível a constatação de que existem de fato mecanismos institucionais perversos que contribuem para criar tais dificuldades, tais como, por exemplo, a alta rotatividade nas diferentes funções, bem como o fato de que depois de certos postos da carreira não mais existe a obrigatoriedade de cursos de atualização de conhecimentos para os oficiais.

Em segundo lugar, acreditamos que esses perversos mecanismos possam ser  minimizados se houver atualização dos oficiais com base em conhecimentos científicos.  

Fazemos aqui a ressalva que esses mecanismos, citados dois apenas como exemplos, são aqui  identificados segundo visão muito pessoal, sujeita pois, às mais variadas críticas ... que podem até contribuir para identificar outros.   

   CMG DE HOJE... OS ALMIRANTES  DE AMANHÃ .... OS MESMOS CMG DE ONTEM! 

Essa visão reflete o fato do oficialato se tratar de um ambiente profissional onde a crítica, por mais construtiva que seja, raramente é bem recebida em seus primeiros momentos, levando um período razoavelmente longo para ser compreendida e absorvida. 

E isso ocorre porquê? Talvez porque tal ambiente seja populado por profissionais que vivem as mesmas circunstâncias administrativas e cujo conhecimento comum é adquirido diuturnamente pela prática de atividades gerenciais de mesma natureza (por sinal, comuns também em várias outras atividades profissionais), do início ao fim da carreira e, eventualmente, de atividades de natureza profissional específicas, em alguns poucos momentos da carreira.

Com conhecimentos e aptidões niveladas por um sistema educacional comum, dificilmente um daqueles profissionais (principalmente se estiver em posição de mando) aceita o que parece ser uma superioridade de conhecimentos, e tende a rejeitar idéias novas.

Ainda mais, não existem mecanismos eficientes que aportem conhecimentos científicos oriundos de visão exógena a esse ambiente educacional (veja a limitação das OMOTs, citada parágrafos atrás, por exemplo),  muito embora eles estejam disponíveis em várias fontes em face da velocidade com que circula a informação. Em outras palavras, não existem  mecanismos eficientes de aporte do conhecimento científico externo que possam melhorar o desempenho individual, na medida em que se galga os postos mais elevados da carreira (os indivíduos freqüentam sempre os mesmos cursos internos, onde predomina o conhecimento vulgar).

O CICLO VICIOSO DO CONHECIMENTO COMUM.

Configura-se, ao final, um ciclo vicioso, em que oficiais superiores,  agora estagiários ou alunos de cursos de Altos Estudos, ao se graduarem, irão  exercer funções no  órgão de assessoramento geral da instituição naval. Neste, produzirão pareceres que se exteriorizam por seus chefes imediatos, e que servirão de orientação aos indivíduos que estão na execução das demais atividades da instituição naval. Fechando o ciclo, estes indivíduos irão freqüentar os mesmos cursos de Altos Estudos, e eventualmente irão ocupar os mesmos cargos no órgão de assessoramento geral, tudo dentro de um mesmo nível e padrão cultural que caracterizam a cultura institucional vigente.

Caracteriza-se, ainda, o fato de que no ambiente militar naval prepondera o conhecimento comum, o qual comporta algumas características indesejáveis, como ensina Lakatos(Nota 5): são conhecimentos valorativos, reflexivos, assistemáticos, falíveis e inexatos. Para ocorrer o aprimoramento cultural, faz falta a prática de considerar diversos assuntos navais pela metodologia da abordagem científica do conhecimento.

Duas são as constatações imediatas em face desse ciclo vicioso, e da preponderância do conhecimento vulgar, ou comum: (1) o aporte de novos conhecimentos só pode acontecer via Educação – Ensino. Isto é, o Ensino na MB é o portal de entrada dos conhecimentos, como de fato o Ensino o é em qualquer outra área de trabalho; e (2) se não for praticada uma metodologia científica para trato dos conhecimentos, novos conceitos e inovações tecnológicas não serão incorporados na cultura institucional vigente.

Agravante é que quando esses profissionais chegam aos postos de direção ou mando do almirantado, por força das circunstâncias ingressam na categoria de onicientes, embora não mais recebem novas informações, nem internas nem externas (sobre isto recomendamos a leitura do artigo do professor Luiz Marins, nesse mesmo exemplar).

De certa forma, no ambiente militar, o alto mando permanece com a cultura institucional adquirida até o último escalão de promoções que não sejam as por escolha (o que só evita pelo esforço individual de ler, de saber  ouvir e então, fazer). Do ingresso no generalato, por exemplo,  não mais têm tempo de se submeter aos estágios de atualização e aperfeiçoamento, bem verdade que, as vezes até patrocinam, mas não freqüentam.

Se esse alto mando, presidência ou direção, for na instituição privada, esses executivos correm o risco de serem alijados da equipe por incapacidade, pois não geram os resultados desejados (normalmente, lucro). É claro que se não houver essa penalização, eles não terão a mínima preocupação em se atualizar.

COMO ALTERAR ESSE CICLO VICIOSO, NÃO SEM ALGUNS OBSTÁCULOS.

Acreditamos que só poderá ocorrer mudança de paradigma nesse ciclo vicioso se ocorrer um  rompimento no âmbito das organizações educacionais, normalmente e em particular naquelas de Altos Estudos. E esse rompimento será, normalmente, fruto de muito esforço e argumentação individual (ou de um grupo de estudos) que convença a um executivo, em eventual posto de chefia, logo com capacidade de decisão, a decidir pelas mudanças.

Importante salientar que tais cursos de Altos Estudos são, normalmente,  requisitos para avançar aos escalões de comando ou direção, o que impõe aos seus estagiários ou alunos o risco de condicionamento pela preocupação do sucesso, alcançado as vezes pela valorização mais da forma que dos  conteúdos.

Talvez surjam idéias novas, de alguns mais ousados, mas as que surgirem poderão estar sujeitas ao lápis “bi-color ” dos avaliadores, que normalmente são os mesmos indivíduos oriundos do círculo vicioso. De um modo geral os trabalhos finais de cursos dessa natureza serão “aceitáveis”, mas irão engrossar as prateleiras das bibliotecas especializadas, onde estarão fadados ao empoeiramento até a próxima limpeza geral da biblioteca, em busca de mais espaço. 

Os indivíduos assim formados irão, mais tarde, ser promovidos aos postos de presidência, gerência, direção, que título tomarem, tornando-se os onicientes linhas atrás mencionados.

Esse é um processo que se observa em muitas instituições, o que não o livra de ser indesejável. A única possibilidade de rompimento advém da vontade política de mudar, e se dá através das organizações de ensino, pela introdução e disseminação de  novos conceitos e conhecimentos, normalmente de origem externa e preferencialmente segundo metodologia científica.

No âmbito do Ministério da Defesa essas organizações são as escolas de Altos Estudos. Na MB, é a Escola de Guerra Naval, onde se estuda o que é o Poder Naval, sua aplicação e seus elementos (exceto no que diz respeito ao seu preparo, abordado apenas superficialmente).

Toda essa dialética tem a ver com a produção dos sistemas de defesa navais, em especial dos navios de guerra, como iremos ver em outra oportunidade.

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Nota 1.EMA 400 - Manual de Logística da MB.

Nota 2. Embora isso possa ser uma tendência comum (mas não normal, se atentarmos para o artigo do professor Marins (artigo reproduzido neste mesmo exemplar)), ela tem que ser combatida.

Nota 3. Ministro Mauro Cesar Rodrigues Pereira

Nota 4."desconexão - conflito penetrante, não natural, que desalinha os objetivos de administradores executivos e técnicos, e que prejudica ou impede as empresas de obterem um eficaz retorno sobre os custos de investimento em tecnologia da informação." WANG, Charles B. Techno Vision II. Tradução de Maria Nolf e Miguel Cabrera. São Paulo. Makron Books. 1998. Embora o termo tenha sido usado com referência à tecnologia da informação, a mesma idéia pode se aplicar à tecnologia que envolve a obtenção de sistemas militares de defesa.    

Nota 5. Lakatos, Eva Maria, Marconi, Maria de Andrade. Fundamentos da Metodologia Científica. Atlas 3ed.